“O que não pôde ser elaborado pela consciência retorna como ação. O paciente
repete, sem saber, em vez de recordar.” (Freud, 1914)
O corpo carrega marcas e cicatrizes, visíveis ou não. Muitas vezes, não nos
lembramos da origem dessas marcas; elas simplesmente estão ali, assim como
não temos memória do surgimento dos nossos cabelos, olhos, orelhas, boca e
demais partes do corpo. Ainda assim, seguimos realizando atividades cotidianas
como pentear os cabelos, limpar os olhos ao despertar e nos alimentar
diariamente. Em diversas ocasiões, esquecemos a naturalidade que esses
processos adquiriram em nossa vida. Da mesma forma, as marcas deixadas por
um evento traumático também seguem presentes em nossa existência, mesmo
que não tenhamos plena consciência de sua causa.
A dor, tal como qualquer outra sensação, é experienciada e internalizada ao
longo do tempo, tornando-se uma condição habitual. Essa realidade persiste
mesmo diante das tarefas do cotidiano como trabalho, estudos, projetos e
viagens. Em determinados momentos, porém, a angústia se manifesta de forma
tão intensa que impacta corpo e mente, configurando-se como uma interrupção
na rotina. Como compreender, então, a angústia resultante da marca deixada
por um trauma?
Para uma compreensão mais profunda da vida pós-trauma, é importante analisar
a etimologia do termo. Segundo Roudinesco (1998), a noção de trauma, tal como
empregada na expressão “neurose de guerra”, foi inicialmente formulada por
Hermann Oppenheim (1858–1919), que o caracterizou como uma afecção
orgânica resultante de um evento real. Esse evento provocaria alterações físicas
nos centros nervosos, acompanhadas de manifestações psíquicas como
depressão, hipocondria, angústia e delírio. Os primeiros estudos sobre o tema
foram impulsionados pelas consequências da Primeira Guerra Mundial e se
prolongaram durante a Segunda Guerra, período em que se observaram
sintomas físicos e psíquicos persistentes entre ex-combatentes.
Com base nessa origem, Laplanche e Pontalis (2001, p. 522) definem o trauma
como “um acontecimento da vida do sujeito, caracterizado por sua intensidade,
pela incapacidade do sujeito em lhe responder adequadamente, pelo transtorno
e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica”.
Esse acontecimento pode ser marcante, causando reações que, no momento,
parecem difíceis de entender. Com o tempo, essas emoções podem influenciar
o comportamento de maneiras que só mais tarde se tornam perceptíveis.
Qualquer situação que provoque uma desordem psíquica, ou seja, que
surpreenda o indivíduo, pode desencadear sintomas até então desconhecidos,
como ansiedade, tristeza, baixa autoestima e comparação social.
Percebo como o trauma pode se tornar evidente no cotidiano das pessoas, por
meio da dificuldade em tomar decisões simples, como elaborar um trabalho para
o curso de graduação. A escolha do tema pode gerar reflexões sobre aspectos
íntimos que não desejamos tornar visíveis aos outros. Na quarta aula com a
professora Silva, em que foram abordados os “atos falhos combinados” e as
“lembranças encobridoras” de Freud, o texto revela experiências pessoais
elucidativas em sua obra. No artigo “Lembranças encobridoras”, Freud informa
que os indivíduos descritos são seu sobrinho e sua prima. Percebi, então, a
importância de abordar temas íntimos para compreender a psicanálise na rotina
do sujeito. Nem sempre é confortável tocar em temas como o trauma; geralmente
é desagradável e até doloroso. No entanto, ao buscarmos a raiz do que nos
incomoda, podemos entender por que repetimos certos impulsos de forma
insistente.
Por vezes, expor uma dor gera vergonha, especialmente quando se espera que
a pessoa já tenha superado a situação. A cobrança social exige que “devamos
ser sempre melhores” e que o tempo de recuperação seja curto, para que
voltemos rapidamente às nossas atividades sem prejudicar os outros. Mas, como
mostra a etimologia do trauma, quando este é intenso, é natural que suas
reações surjam mais tarde. E a intensidade de um evento só será marcadamente
doente para o indivíduo se ele já o tiver experienciado de forma semelhante
anteriormente. Essa pressão pode gerar comparações com quem passou por
experiências parecidas, como se houvesse uma corrida em que você é o único
a não cruzar a linha de chegada. Surge, então, a tristeza, a baixa autoestima e
a insegurança para prosseguir, levando até mesmo à desistência. Em rodas de
conversa, é comum ouvir relatos sobre experiências de infância vividas de forma
diferente por irmãos, apesar de se referirem à mesma situação. Isso evidencia
como o trauma é subjetivo e vivido de forma singular por cada pessoa.
Sem perceber, podemos cair em um ciclo de repetição do trauma, como se esse
mecanismo inconsciente servisse para satisfazer uma necessidade interna de
sofrimento. Um exemplo disso seria a dificuldade recorrente em concluir
trabalhos acadêmicos, mesmo que essa situação já tenha sido enfrentada
anteriormente. Segundo Freud (1914), o sujeito não revive o trauma como uma
lembrança, mas como um ato: ele o repete de forma natural e inconsciente. Essa
repetição manifesta-se na tentativa de aliviar a angústia causada pela dor
traumática. Em alguns momentos, esse ciclo pode provocar sentimentos de
irritação, inquietação ou até estados depressivos. Assim, compreendo que o
trauma marca cada pessoa de maneira singular e pode repercutir diretamente
em sua rotina.
Em alemão, Angst (angústia) refere-se tanto a ameaças específicas quanto
inespecíficas. Pode indicar uma situação de medo real ou uma experiência que
repercute no mundo interno. Entendendo isso, é essencial analisar o quanto o
ato de repetir pode se tornar compulsivo e patológico, representando uma cisão
no bem-estar do indivíduo. É como estar aprisionado ao trauma, buscando
inconscientemente situações semelhantes para dar sentido à dor e, talvez,
encontrar uma forma de libertação da angústia.
Algumas situações cotidianas, por serem familiares, podem acionar gatilhos
emocionais e levar à repetição de comportamentos já conhecidos pela mente.
Isso cria uma falsa sensação de controle como se, ao repetir o padrão, fosse
possível evitar novas surpresas. Há a ilusão de estar consciente do próprio
comportamento, acreditando que isso protege o sujeito de novas dores.
O trauma atinge cada ser humano de forma única, e a intensidade com que isso
ocorre pode estar relacionada às vivências que o indivíduo teve na infância. A
psicanálise, dentro de sua teoria, busca considerar a subjetividade para além do
sintoma. É por meio de comportamentos repetitivos que a elaboração pode
ocorrer, a partir de um encontro do sujeito consigo mesmo, na tentativa de
elucidar suas angústias. Dessa forma, pode-se concluir que o trauma está
relacionado à dor particular de cada pessoa e à forma como ela se manifesta no
cotidiano, marcando de maneira singular a experiência de vida, a ponto de o
sujeito se acostumar com essa forma de existir.
Referências:
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: Observações psicanalíticas sobre um
caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre
técnica e outros textos. 10. Ed. São Paulo: Companhia das letras. 2010
HANNS L. Dicionário do alemão de Freud. Imago. Rio de Janeiro. 1996.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. 5.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ROUDINESCO, Élisabeth. Dicionário de Psicanálise. 2. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.