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07 de agosto de 2025
Quando a violência vira linguagem do amor, algo em nós adoeceu.

Com frequência, nos deparamos com notícias seja nas redes sociais ou na televisão que relatam situações de violência de gênero, muitas vezes justificadas como respostas a sentimentos mal elaborados, como o ciúmes. Nesta semana, fomos novamente confrontados com uma cena absurda, porém tristemente familiar: uma mulher foi brutalmente agredida com 61 socos num elevador, por um homem com quem mantinha um relacionamento.


Isso não foi um ‘surto’. Não foi um ato isolado. Foi a expressão trágica de uma violência que já vinha sendo construída sustentada por uma relação marcada por sinais anteriores de controle, dominação e agressões psicológicas.”

Deparar-se com a violência psicológica não é algo distante da nossa realidade. Pelo contrário, ela está muito mais próxima do que podemos imaginar. São situações comuns a muitas realidades, independentemente da classe social. Embora seja frequentemente visível em contextos de maior vulnerabilidade, a violência tem atravessado diferentes grupos e contextos, desde os primórdios da história da humanidade. O mais doloroso é percebermos que estamos adoecendo enquanto sociedade, à medida que começamos a normalizar a agressão, frequentemente justificando-a como um caso isolado ou um ato de monstruosidade que não nos diz respeito.


Amar tem se tornado, para muitas mulheres, um ato de sobrevivência constante. Submeter-se aos impulsos do outro, passa a ser parte do esforço para manter um relacionamento. Vive-se em situações que exigem resiliência, que cobram o perdão em nome do amor como se amar também significasse aceitar a agressão, como se o amor viesse, inevitavelmente, acompanhado da dor.

E assim canta Djavan: ‘Amar é um deserto e seus temores… ’. E quantas vezes não é exatamente isso o que se constrói? Um deserto seco de trocas, de reciprocidade onde o que resta é sobreviver. ‘Vida que vai na cela dessas dores… ’ ‘Você deságua em mim e eu esqueço que amar é quase uma dor…’


Na escuta clínica, é comum observarmos esse movimento: pessoas que ignoram sinais evidentes de sofrimento em nome de um amor idealizado, permanecendo em relações destrutivas. Freud nomeou esse impulso de pulsão de morte uma força que nos move não apenas em direção ao prazer, mas também à repetição do desprazer, à destruição, ao retorno ao inorgânico. A pulsão de morte se manifesta quando o sujeito insiste em relações que o adoecem, quando se submete ao sofrimento como se ele fosse inevitável, quando confunde violência com cuidado.


E aí, a fala poética da música toca um ponto sensível:

“Só sei viver se for por você…”

Essa entrega que parece romântica, mas que revela uma ausência de si. Quando o outro se torna nossa única fonte de existência, qualquer coisa pode parecer amor, até o que nos destrói.


Winnicott, por sua vez, nos lembra que o sujeito só consegue se sustentar emocionalmente quando encontra um ambiente suficientemente bom para ajudá-lo a ser. Quando isso falha por traumas, negligência ou pela ausência de um espelho afetivo, a pessoa pode crescer sem um senso sólido de identidade. Ela se adapta, se molda, se anula… esperando ser amada. E, nesse vazio, muitas vezes o que se chama de amor é, na verdade, medo de abandono.


O que estamos vivendo é o resultado de uma sociedade que falhou em ensinar o que é amar. Confundimos amor com posse. Confundimos cuidado com controle. Confundimos presença com vigilância. E, quando a dor aparece, buscamos justificá-la como prova de afeto porque foi isso que aprendemos a chamar de vínculo. A mulher agredida não foi apenas violentada fisicamente. Ela foi silenciada no seu sofrimento anterior. E quantas outras estão, neste exato momento, vivendo relações em que a violência já começou, mesmo que ainda não tenha chegado aos 61 socos?


É preciso romper o pacto de silêncio. É preciso escutar o que dói, antes que a dor chegue ao corpo. É preciso dizer, com todas as letras: isso não é amor.


Referências psicanalíticas:

Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer – pulsão de morte e repetição do desprazer

Winnicott, D. W. (1965). O Brincar e a Realidade – falso self e falhas ambientais no desenvolvimento emocional

Djavan. Música: Oceano (1989) – expressão poética